19 de março de 2024 - 06:07

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Por determinação da Justiça, única escola quilombola do Vale do Ribeira permanecerá fechada

Encerrada pela Prefeitura de Registro, a Escola Municipal de Educação Básica José Bruno, unidade de ensino quilombola, localizada no bairro Peropava, irá continuar fechada, conforme determinação do Tribunal de Justiça de São Paulo.

A liderança da comunidade alega imposição “unilateral e autoritária” do município no processo e transferência dos alunos. De acordo com Andréia Regina Silva Cabral Libório, também integrante do Coletivo de Educação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e graduada em Pedagogia, no final de 2017, iniciou-se um processo de desmonte da escola.

“Tudo indicava um movimento para o fechamento da escola e um preparo para a transferência das crianças. Posteriormente, os responsáveis legais pelas crianças foram informados de que seus filhos seriam transferidos para outra escola. Eles simplesmente transferiram e informaram que não ia mais funcionar. Algumas mães foram bem pressionadas. Foi unilateral”, destaca a liderança.

Diante desse cenário, a comunidade começou uma mobilização para o fortalecimento das informações em relação aos direitos sobre a educação escolar quilombola. O caso também foi levado em 2017 à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que, em janeiro de 2018, decidiu por ajuizar uma ação civil pública em favor da comunidade de Peropava.

Alma Preta Jornalismo teve acesso à decisão do Tribunal de Justiça proferida em 17 de setembro de 2021 favorável ao recurso movido pelo município de Registro, após ação civil pública. De acordo com argumentos da prefeitura do município, disponibilizados no relatório da decisão, a unidade escolar tinha apenas um aluno matriculado durante o ano de 2018, o que acarretava prejuízos financeiros.

Desmonte da unidade escolar

De acordo com o documento do processo, a Defensoria Pública recebeu os relatos sobre o projeto da prefeitura para que as crianças frequentassem outra unidade escolar, entretanto, os alunos tinham que acordar muito cedo para esse deslocamento e voltavam muito tarde, sem receberem alimentação adequada, em ônibus inseguro e estrada precária, além de, muitas vezes, ficarem ociosas por falta de atividade.

A Defensoria Pública afirmou que enviou ofício ao município de Registro requisitando informações sobre a pretensão de encerramento das atividades dessa escola e, em resposta de dezembro de 2017, a Secretaria Municipal de Educação afirmou que a instituição em questão não era quilombola, por ausência de previsão expressa na Lei Municipal nº 1.182/2011 que a criou.

Entretanto, entre os anos de 2014 e 2016, o município declarou o estabelecimento de ensino de Peropava como quilombola para fins de recebimento de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FUNDEB). Além disso, o Plano Municipal de Educação Decenal de Registro (2015 a 2025) reconheceu a escola de Peropava como quilombola.

“No caso dos autos, a EMEB José Bruno está situada no Bairro Peropava, território quilombola de Peropava, Terra dos Mucafres, conforme reconhecido pelo Relatório Técnico-Científico elaborado pelo ITESP no ano de 2011. Portanto, aludida unidade é uma escola quilombola, sendo irrelevante o fato da Lei Municipal que a criou, não a definir como tal”, interpretou a decisão do Tribunal de Justiça.

De acordo com Andréia Regina, já em janeiro de 2018, a comunidade se deparou com o desmantelamento da escola, no qual servidores da Prefeitura retiraram todos os armários e equipamentos e esvaziaram a sala de aula. A comunidade também encontrou possíveis sinais de arrombamento na porta da cozinha.

“A pia da cozinha foi encontrada cheia de fezes de morcego, um problema antigo na escola, que a comunidade já havia apontado diversas vezes à Prefeitura e Secretaria Municipal de Educação”, informou.

Em um primeiro momento, por meio da ação civil pública, a Defensoria Pública obteve uma decisão liminar favorável que manteve o funcionamento de escola na comunidade quilombola. Além disso, a ação também buscava a ampliação do serviço educacional da EMEB José Bruno para que passasse a ofertar também creche e pré-escola às crianças quilombolas.

A decisão liminar também obrigava o município a promover completo levantamento de estudantes interessados no serviço educacional de sua competência (creche, pré-escola, ensino fundamental anos iniciais) e também que apresentasse planejamento e cronograma, no prazo máximo de 30 dias, para implementação de serviço educacional de creche e pré-escola na comunidade, sob pena de incidência de multa diária no valor de R$ 10.000,00.

“Somando todas as crianças haveria um total de 16 estudantes (cinco em creche; seis na pré-escola; cinco nos anos iniciais do ensino fundamental), número suficiente para justificar a manutenção da unidade escolar e ao mesmo tempo satisfazer o direito público subjetivo à educação escolar obrigatória no próprio território quilombola”, revela argumento da Defensoria disponível no relatório do processo.

Segundo Andréia Regina, a escola permaneceu funcionando até o início de 2019. “Após a Prefeitura recorrer novamente do processo inicial, o juiz determinou que a escola fosse novamente fechada, e permanece fechada até hoje. Essa parte do processo corre em segredo de justiça e não temos maiores informações”, destaca a quilombola.

Decisão unilateral

Em relatório do processo, a prefeitura de Registro alega que realizou uma reunião com a comunidade escolar em 21 de novembro de 2017 e os pais dos alunos concordaram com o encerramento das atividades escolares da EMEB José Bruno, sobretudo em face da queda de matrículas e rematrículas desde o ano de 2011.

A prefeitura ressaltou que somente uma criança efetuara matrícula para o ano letivo de 2018, o que também acarretaria elevado custo para a manutenção da escola em funcionamento.

“A manutenção, em sede de liminar, do funcionamento de uma escola em benefício de uma única criança matriculada para o ano letivo de 2018 ensejava sério risco de comprometimento do erário público e da prestação de outros serviços públicos à toda a coletividade. Também considerou haver prejuízo ao pleno desenvolvimento dessa criança, caso mantida isolada naquela escola, sem nenhuma convivência com outros infantes da mesma faixa etária”, diz trecho do processo.

O documento do processo ressalta que o município cumpriu todas as exigências para o fechamento da escola. Além disso, o documento coloca que no ano de 2017, os alunos não apresentaram índice satisfatório de desempenho de aprendizagem e, para a melhoria dessa aprendizagem, passaram a disponibilizar aulas diferenciadas em outra unidade escolar.

De acordo com a quilombola Andréia, os responsáveis legais pelas crianças tinham interesse em manter os filhos na EMEB José Bruno, mas, devido à insegurança jurídica que a situação com a gestão pública causava e a pressão por parte dos agentes municipais sobre as famílias, somente uma mãe resistiu em manter a matrícula de seu filho em 2018.

“Devido às contínuas pressões e desgastes para transferência das crianças para outra escola e com o fechamento impositivo, convencidos de que nessa outra escola as condições e infraestrutura seriam melhores, muitos optaram por manterem transferência dos filhos, uma vez que esta já havia sido feita pela secretaria da escola Sede”, relata.

Segundo a liderança do Quilombo de Peropava, somente os pais das crianças foram consultados para o fechamento da escola.

“A secretaria municipal afirmou que as pessoas que estavam reivindicando o não fechamento da escola não faziam parte da comunidade escolar e que, portanto, aquele questionamento não era cabível, apresentando assim uma visão totalmente errônea sobre o que significa uma comunidade escolar em seu cerne. Comunidade escolar é aquela que envolve o entorno da escola”, destaca Andréia.

Na ação civil pública, a Defensoria afirma que não houve observância do artigo 28 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que impõe procedimento rigoroso para fechamento de escolas do campo e quilombolas e que o estudo de impacto de ação mencionado pelo município foi entregue posteriormente à transferência compulsória dos alunos quilombolas.

A Defensoria pontua que as reuniões promovidas pelo município “são imprestáveis à finalidade imposta pelo referido dispositivo, na medida em que não foram precedidas de ampla divulgação à comunidade escolar e de convite pessoal e formal aos responsáveis pelas crianças e à associação que representa o grupo”.

“É importante destacar que as crianças foram transferidas para outra escola rural, com infraestrutura tão precária quanto a da EMEB José Bruno, a diferença é que precisam viajar quilômetros para estudar em estrada com condições sempre precárias”, relata a pedagoga Andréia.

Situação hoje

“A comunidade sempre lutou para ter e manter uma escola no território, entretanto esse direito novamente foi relegado com práticas de desmonte das escolas do campo e por processos de nucleação com a transferência das crianças para escolas distantes. O fechamento impositivo desta escola demonstra um verdadeiro absurdo de retrocessos e de violação dos direitos em relação à educação obrigatória que é um direito público subjetivo”, aponta a liderança.
A Alma Preta Jornalismo pediu um posicionamento para a prefeitura de Registro sobre os relatos da comunidade de fechamento impositivo e de desmonte da escola quilombola. Além disso, a reportagem indagou a prefeitura sobre como tem sido as tratativas com a comunidade de Peropava e o suporte para a transferência das crianças para a nova escola. Até o fechamento do texto, não obteve retorno.
*Com informações do Portal Terra
Foto: Colagem: Vinícius de Araujo / Alma Preta Jornalismo com imagens de Jacob Lawrence / Alma Preta

 

Diário do Ribeira

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