19 de abril de 2024 - 15:27

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Fogo na Cinemateca pode ter extinguido memória de políticas públicas do cinema

O incêndio que atingiu nesta quinta-feira (29) o depósito da Cinemateca Brasileira, na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo, incinerou quatro toneladas de documentos sobre políticas públicas de cinema do Brasil, praticamente extinguindo a memória das instituições e programas audiovisuais brasileiros.

O galpão era uma espécie de lugar de passagem de materiais. Mas esses registros históricos foram transferidos ao longo de anos do Rio de Janeiro para a Cinemateca sem os recursos necessários para que fossem tratados por meio de triagem e catalogação, para posterior encaminhamento a outros locais de preservação. Parados, foram consumidos pelas chamas.

“Esses documentos trazem todos os registros das políticas para o cinema feitas no Brasil. Começa no Instituto Nacional do Cinema, em 1967, e chega a Secretaria Nacional do Audiovisual, passando pelo Conselho Nacional de Cinema e por parte da história da Embrafilme.

“A memória da política pública do cinema brasileiro acabou. E isso me parece simbólico”, avalia Carlos Augusto Calil, presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca. “Perdeu-se a memória da política pública de cinema do Brasil, o que é uma perda material e também simbólica porque a política pública de cinema no Brasil está hoje em xeque.”

Parte dessa documentação já havia sido atingida por uma enchente em fevereiro do ano passado. “Na ocasião, já houve um prejuízo muito grande. Foi uma tragédia”, afirma Calil. “Infelizmente, não podemos dizer que o incêndio de agora seja uma surpresa.”

Débora Butruce, presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, diz que o incêndio se soma à tragédia da inundação. “É um ciclo de tragédias que pode ainda não ter chegado ao fim.”

Segundo ela, a Cinemateca Brasileira sofre “um processo de desmonte que tem se acelerado de forma criminosa porque foi interrompido um contrato de gestão”. “E, em vez de se dar uma nova solução à Cinemateca, prometida para um mês, passou quase um ano sem que nada fosse feito. A gente sempre diz que um acervo pode não esperar. E foi isso o que aconteceu.”

“A preservação é uma tarefa contínua, que não acaba nunca. Nada está preservado, tudo está sempre em processo de preservação. E o monitoramento constante é capaz de minimizar os efeitos do tempo e de uma tragédia como esta”, afirma Butruce, para quem a negligência do poder público em relação à área da preservação no Brasil é uma questão estrutural. “Mas, para além disso, o que temos visto nos últimos anos é uma negligência sem precedentes, absurda.”

Segundo o secretário municipal da Cultura de São Paulo, Alê Youssef, “se o corpo de bombeiros confirmar que esse incêndio é fruto de uma falta de manutenção, estaremos diante da crônica de uma tragédia anunciada”.

“Será então mais uma das diversas ações de ataque à cultura, de ataque à memória, de ataque ao patrimônio brasileiro que o governo federal faz porque tem uma linha ideológica radicalizada e completamente distorcida e dissociada da cultura brasileira que a gente já tinha denunciado há muito tempo”, afirmou.

No final de 2019, foi encerrado o contrato entre o governo federal e a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, a Acerp, organização social que fazia a gestão da Cinemateca Brasileira. Sua sede, na Vila Clementino, zona sul de São Paulo, teve as chaves recolhidas por Hélio Ferraz de Oliveira, diretor do Departamento de Políticas Audiovisuais da Secretaria Nacional do Audiovisual, em 7 de agosto de 2020, com direito a escolta da Polícia Federal.

Desde então, o governo não substituiu a gestora por nenhuma outra organização social e, com isso, a Cinemateca ficou sem os serviços essenciais de monitoramento e preservação dos acervos.

No primeiro semestre do ano passado, o Ministério Público Federal instaurou uma investigação sobre a falta de unidade gestora da Cinemateca. E requereu judicialmente que, em caráter emergencial, a União renovasse o contrato com a gestora anterior, buscasse nova gestora ou assumisse ela mesma a gestão desse patrimônio.

“Pedimos emergência à União e ao Judiciário federal para que cuidassem do monitoramento e prevenção de incêndios, cujo risco era real. E tanto era real que aconteceu. A ausência de providências é, portanto, da União, e de urgência, do Poder Judiciário”, afirma Gustavo Torres Soares, procurador da República em São Paulo. “A gente ainda não sabe o grau do prejuízo, mas certamente há um patrimônio público federal grande que foi prejudicado.”

Inaugurada em 1946, a Cinemateca foi criada como uma instituição privada de interesse público. Em 1984, ela passou a ser uma fundação ligada ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e, desde então, não houve mais concursos públicos para funcionários de manutenção de seus acervos. Isso até 2018, quando a Cinemateca passou a ser administrada por organizações sociais, cujo modelo não contempla a manutenção de servidores públicos. Cada gestão terceirizada contratou sua própria equipe de preservação.

 

INVESTIGAÇÃO

A Polícia Civil investiga as causas e eventuais responsabilidades pelo incêndio que atingiu o galpão da Cinemateca Brasileira. A Polícia Federal (PF) também irá apurar o caso, segundo a Secretaria Especial da Cultura, pasta do governo federal responsável por administrar o local. Não houve vítimas.

Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), antes de ser atingido pelas chamas, o local estava regularizado e possuía certificação dos Bombeiros, o chamado Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB). A corporação atestou no documento que o prédio possuía todas as condições de segurança contra incêndio e pânico, previstas na legislação.

Mas em audiência realizada no último dia 20, o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) já havia emitido outro documento para alertar o governo federal, responsável pela Cinemateca, para o risco de incêndio no local. O incêndio ocorreu nove dias depois.

De acordo com o Corpo de Bombeiros, o fogo começou em um ar-condicionado de uma das salas de acervo histórico de filmes que fica no primeiro andar. O aparelho passava por uma manutenção feita por empresa terceirizada contratada. Uma faísca teria dado início ao fogo, e a equipe não conseguiu controlá-lo.

 

Diário do Ribeira/Gazeta SP

Foto: Bombeiros de SP

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